Se por um lado a Tradição do Adufe e o seu contexto o distinguem de todos os outros frame drums, por outro lado, as práticas a ele associadas – as cantigas, o toque do adufe e a adoração de uma figura feminina (Nossa Senhora) – mostram-nos a ligação evidente a uma família de instrumentos que podemos encontrar amiúde nas diversas culturas e povos do Mediterrâneo e resto do Mundo – os frame drums.
Da qual fazem parte, por exemplo: a pandeireta, o pandeiro mirandês, pandero de Peñaparda, tammorra, tamborello, duff, tar, bendir, daff, tof miriam, o tambor xamânico, o riqq, o bodhrán, entre muitos outros.
São instrumentos que se tocam com as mãos, dedos e/ou com uma baqueta, para acompanhar o canto e a dança, nos momentos da vida quotidiana, rituais e manifestações religiosas.
Ver a obra “When the drummers were women – a spiritual history of rhythm” de Layne Redmond.




O adufe, no meu entendimento, sempre foi um instrumento ritual e a sua Tradição é sobretudo ritual, religiosa, espiritual e feminina. Ainda nos dias de hoje. As Adufeiras porventura noutras culturas seriam chamadas xamãs.
Historicamente, Portugal é um país com uma uma cultura profundamente católica e machista (salvaguardando-se, a evolução actual e a abertura para debater estes temas). Onde as práticas consideradas pagãs sempre foram severamente reprimidas. As mulheres têm sido oprimidas e dominadas, assim como qualquer expressão da sua dimensão feminina. Judith Cohen, etnomusicóloga, faz referência a esta circunstância nos seus artigos (ver bibliografia abaixo).
Quando descrevemos a prática das romarias como: grupos de mulheres que se juntam numa capela no meio da natureza para tocar e cantarem em conjunto, louvando uma figura feminina e cumprindo a mesma tradição das suas mães e avós, percebemos que estamos perante algo mais profundo do que apenas uma tradição musical ou um instrumento folclórico.
Serão as romarias a reminiscência possível de uma dimensão feminina, espiritual, religiosa, curadora e mágica que teve de se adaptar, ao longo do tempo, para sobreviver e persistir apesar da imposição cristã e do machismo da sociedade? Na minha opinião, sim.
Assim como os grupos de adufeiras do contexto tradicional e dos meios urbanos, onde podemos observar de forma evidente os laços que unem as mulheres destes grupos, o espírito de partilha, fraternidade, compreensão, amizade, empatia, respeito, liberdade… (e muitas outras coisas que não compreendo porque sou homem e porque que sinto que devo apenas respeitar e desfrutar, sem me intrometer.) Algo mágico e profundo acontece quando as mulheres se juntam para tocar adufe e cantar.
Da mesma forma, acredito que aparentemente simples e até inocentes, as cantigas de adufe, as melodias e as letras, que têm passado de geração em geração ao longo dos séculos, são um legado deste poder feminino e desta magia. Ao mergulharmos nelas sentimos a sua profundidade e função.
Esta magia e este ritualismo são tácitos, sobretudo pelas razões históricas e culturais que referi. Também porque as pessoas vivem a Tradição, tocam, cantam e não lhe atribuem estes conceitos ou fazem estas analogias com manifestações semelhantes.
Sentem-se, existem, provocam algo de profundo em quem faz, participa, assiste e a quem se abre a conhecê-lo e a vivê-lo.
Na opinião do realizador Tiago Pereira (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria), a regeneração da Tradição do adufe e o futuro da mesma, em pleno século XXI, passa pelo movimento urbano de redescoberta desta e de novas ritualidades nas quais o adufe tem sido adoptado, através da composição de novas cantigas.
